domingo, julho 13, 2003

Retrochrono



Caminhava na beira da praia com o meu novo relógio. A leve chuva e a brisa vinda do mar se juntavam formando uma combinação bem gelada no meu rosto. Resolvi dar uma olhada nas funções do relógio que aquele velhinho me oferecera. Ele me parecia um ancião bem misterioso, ceguinho, com o corpo maltratado pelo tempo, pelos brancos por toda parte, trajava uma manta usada bem comprida e remendada, calçava seus pés enrugados com sandálias...andava lentamente e tinha um cajado que provavelmente lhe servia para evitar encontrões com postes e outros obstáculos diversos. Ele apenas estendera o braço me mostrando o relógio...pronunciou umas palavras incompreensíveis, mas pelos seus gestos entendi que era um presente. Mexendo nas funções do relógio, vi que tinha uma espécie de timer...uma contagem regressiva. Acertei o tempo para 30 segundos. E começou...29,27,26...15,14,13....Uma bicicleta passa por mim e esbarra no meu braço. Nada de grave. 4,3,2,1... Esperava ouvir alguma coisa, um alarme, um bip qualquer...nada. Parei e olhei para o relógio..mas ele não havia parado...ao invés disso marcava -1, depois -2, -3, -4...Não sentia mais a chuva no meu rosto. O vento que vinha pela frente..agora batia em minhas costas.. -8, -9, -10...Não conseguia parar com a contagem. -11, -12, -13...Novamente, o ciclista esbarra no meu braço. Olhei para ver quem foi. Era o mesmo ciclista...mas..mas..pedalava para trás? Olhei em volta para ver se alguém mais tinha reparado no ciclista pedalando para trás...e? Todo mundo estava andando para trás! Pensei estar no meio de alguma gravação, uma pegadinha...mas não. Olhei para o relógio -25,-26,-27... "Porcaria que não consigo parar!!!" Olhei o mar, as ondas não quebravam...mas pareciam surgir da areia...como que sugadas na direção do alto mar. Podia ver as gotas da chuva subindo aos céus..."caindo pra cima?"..o chão ia ficando mais seco...Olhei para o relógio..-29, -30, 30, 29, 28...agora tudo parecia normal mais uma vez...a chuva voltou a descer...as ondas vinham na direção da costa...e as pessoas os carros, todos voltaram a andar para a frente. "Provavelmente estava sonhando..que estranho, me pareceu tão real" eu pensei. Chequei novamente o relógio...15,14, 13...Tentei desligar aquilo mais uma vez, sem resultados....Outro ciclista esbarra em mim. Mesmo confuso, reparei que pela 3ª vez seguida, era o mesmo ciclista. Agora eu tinha entendido! A mesma cena se repetia sem parar...primeiro para frente e em seguida para trás. Eu tinha em minhas mãos um objeto extremamente valioso e desejado por todos. Só não podia controlá-lo. Mais uma vez olhei para o meu presente: -11,-12,-13 desviei do ciclista que iria esbarrar em mim novamente. Comecei a procurar um meio de pará-lo. Na parte de trás havia uma espécie de botão com um símbolo estranho. Apertei-o. Nada. Olhei para o relógio...18,17,16,15 olhei para trás...e de novo, lá vinha o ciclista. Continuei insistindo no botão 5,4,3,2,1. Tudo voltaria para trás novamente. Apertei quase que sem esperanças de que o botão servisse para alguma coisa. Olhei para o céu...mas a chuva não estava caindo para cima como deveria. As pessoas andavam para a frente. Nem sinal do ciclista. Olhei para o relógio, um número 0 piscava sem parar. Eu conseguira pará-lo. Tudo tinha voltado ao normal. Não sabia como...se estava sonhando, se o botão funcionou, se desliguei sem querer...só sei que nunca ousaria tentar de novo. Escrevo isso, pois minha hora está chegando e não desejo levar o relógio para meu leito de morte. Amanhã, mesmo sem minha visão roubada pelo tempo, escolherei alguém digno dos mistérios desse tão valioso objeto.

- Israel Son - 17:59




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