quinta-feira, agosto 26, 2004

Ícaro sim, Ícaro não.



Sozinho sentado nas sobras do sol, emboca o beiço e bebe do copo de requeijão, não de cristal, nem tinto de cristo, mas requeijão. No sarrafo vem escrito "Syrah - Cabernet", a suposta uva doce.
Com o passar do vinho, o quarto se deforma e se transforma. Primeiro quadrados se tornam mais curvos, cores mais vívidas, e cantos vazios se preenchem por ecos. Sentidos se fundem e tudo se desenrola e descontrola. Cena bêbada, ébria, avinhada, alcoolizada, embriagada? Quem sabe.

E num instante, o filme pára. Os sons assurdam-se, as cores cegam-se e as vozes mudam-se e mais ainda a sensação é boa, como nos nove meses embrionado.
Pelo vão da cortina surge uma luz, branca como o esquecer e suave como o saber. Invade o quarto e prepara-nos todos: as uvas e eu. A janela se abre e - é um anjo, sei que é - ela surge lindamente, exibindo tudo que a faz merecer o cargo de anjo. Senta-se na janela e sem ser mais do que é, espera. "Não engole saliva, não pisca nem desequilibra, só pode ser anjo... Não vejo suas asas, que diabos fazem com as asas?".
Parece mesmo minha vez de receber, de ser feliz por tanto esperar, por tanto pedir, desejar e ser ateu, chegara de vez a minha vez.
Enfim sorriu, como se empalidecesse o branco omnipresente. Menos atordoado, deixo meu olhar escorrer pelas curvas do seu corpo - palavras de Shakespeare, Camões, Azevedo e até mesmo Sade talvez não pudessem descrever as qualidades da minha escolhida - que bela, que bela é minha afrodite alada...A pele, os seios, a boca, os olh...mas...verdes? Seus olhos...são verdes!

Começou um piscar e antes que pudesse terminá-lo, recebeu entre os olhos a garrafa por mim atirada, caindo janela afora. Do 9º andar viu-se um corpo tombar, lá se foi mais um anjo sem asas e, cá entre nós, um anjo imprudente.

- Porra, verdes.



:: Ouvindo :: Eu te amo, Chico Buarque

:: Rabiscos de cela:
- Israel Son - 22:27




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