quarta-feira, fevereiro 04, 2009

Joker Poker




Aqui estamos, onde eu nunca queria que estivéssemos. Olho para meu amor, minha criação e vejo através de sua fronte, sinapses se derretendo como chumbo. Você sabia - sabia que esse dia chegaria - sabia o preço que um dia teria de pagar. Olha pelos meus olhos vidrados, imóveis e sem emoções. Vejo o desespero espraiando suas pupilas. Você sabe, nós sabemos, logo tudo estaria acabado.
Segura suas cartas com a firmeza que seguraria seus cinco filhos na beira de um precipício. Não quer soltá-las, porque sabe que quando todas se forem nada mais fará sentido.
Mantenho a minha mão sem temer, sem tremer. Não cabia mais a mim carregar o jogo, decifrar os movimentos, não importava. Estava feito. Fecho os olhos por um leve segundo e, na escuridão momentânea, você brilha como um anjo negro. Vejo a tensão em cada nó de seus dedos. Mãos que eu tanto beijara, que tanto me afagaram e machucaram. Vejo cada polígono de sua epiderme cintilando como brilhantes, distinguo os cheiros em cada linha de suas digitais. Aquele toque...Posso ouvir o milímetro de cabelo que está surgindo nesse breve segundo do seu couro cabeludo...tantas vezes me aninhei.
Imóvel, eu estava ali, duro e frio como uma lápide, morto. Minha mão não é boa - não me surpreende - nem me importa, não há dama, não há corações. Você espreme uma carta entre seus dedos, como se pudesse tirar daquele rei um resquício do que tudo significou. Eu a vejo, meu bem, esfregando a carta, tentando absorver e ouvir meu sussurro de amor pela última vez. É tarde. Ouço os pulsos correndo pelos seus nervos. Sinto o coração disparado, sei que se pudesse usaria as espadas; que é demais para suportar.
Mantenho minha mão, com seus símbolos negros de lembranças. Sabe que perdeu, antes mesmo de começar, mas não pode fugir, não dessa vez. Agora tem que jogar. Os cristais e diamantes que eu te dera, são agora apenas ouros atrás de suas unhas. Donas de minhas cicatrizes que ardem num prazer incontrolável, ardem em minhas costas e de leve, eu sorrio. O prazer para sempre escarificado em meus flancos, ombros...minha nuca.
Eu sei meu bem, sei que tem um olho no enorme coração vermelho, esse Ás que sempre fôra sua segurança, sua carta na manga, agora estava ali, lado a lado com seu rei, impotente.

Só nos dois, como tem que ser, juntos até o fim.

Em torno de nós estão as lembranças que dilacerei. Um por um, decapitados, presuções e fraturas expostas, com suas sujas entranhas emersas, todos que ousaram interferir, se sentar nessa mesa, essa noite. Nossa noite. Nem o odor da morte esses vermes têm. Tantos corpos caídos à nossa volta e tudo que vejo é você, seu cheiro impregnado em minha garganta.
Não importa quem vença, ninguém sai inteiro daqui essa noite. Um ganha, os dois perdem, como predestinado.
Seu peito infla, seus seios...me chamam. Sua mão insegura estende uma carta, toca a mesa e volta com outra para se juntar ao seu jogo. Faço o mesmo, Uma só carta, não está em nossas mãos. Se assim será, que sejamos juntos. Minha nova carta, a encaixo serenamente entre as outras.
Eu te vejo meu bem, conheço esse olhar. Travando os pulmões você me fixa seus olhos negros, quase apagados, mas ainda vivos, questionando. Sei o que é novo e te confunde em suas mãos, uma possibilidade. Destino travesso quem sabe, um sinal? Mais uma vez, eu sorrio, dessa vez para você, para que talvez não sofresse nunca mais. E percebe, que eu também, obviamente, agora tenho em mãos, um coringa.




:: Ouvindo :: Shivaree - Goodnight Moon

:: Rabiscos de cela:
- Israel Son - 20:58




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